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Boy Parts: Se tivesse 20 anos, não teria gostado


Boy Parts é a minha primeira leitura da nova chancela da Guerra e Paz, Euforia. O meu eu de vinte anos teria odiado o livro, e já vou explicar um pouco o que me leva a dizer isto, mas quero apresentar-vos um bocadinho o livro que me fez ler as primeiras 100 páginas de seguida. Devo avisar que posso colocar nesta opinião um pequeno spoiler ou outro, mas nada que vá interferir com a vossa descoberta do enredo da história.


Esta obra de ficção é o primeiro livro de Eliza Clark, lançado em 2020. Em Portugal, chegou no passado mês de outubro às livrarias, com uma chancela que promete dar-nos a conhecer personagens controversas, retorcidas, com uma voz única. É mesmo isso que Boy Parts nos dá: a Irina é uma mulher que sabe atrair a atenção de todos para si, através da beleza exterior e de joguinhos mentais.


Quando começamos a ler, somos transportados para um mundo sombrio, que desafia as regras sociais porque a protagonista, fotógrafa, explora o seu lado artístico de forma provocadora, explorando a sexualidade e as dinâmicas de poder/género através da sua arte. Entre trabalhos atuais, e os primórdios da descoberta sobre o que gostava de fazer, descobrimos que a nossa personagem é um ser humano mesquinho, maléfico, que brinca com os sentimentos que as pessoas nutrem por ela - sendo que ela raramente retribui - para continuar a percorrer o caminho sinuoso do que ela gosta através da fotografia.

Daí ter dito que o meu eu de vinte anos não teria gostado deste livro: não acontece nada de especial, não há um plot twist de cortar a respiração, mas temos descrições gráficas, cruas e cruéis de uma mulher que está a viver o melhor que pode.


O livro explora bastante a criação da arte: acompanhamos Irina no momento atual, em que encontra homens para fotografar, mas também somos levados para o passado, para os seus tempos de faculdade. A sua trajetória, que vê o trabalho validado por professores da área, mas também muitas vezes rejeitado, e sempre com o feedback de «faz melhor», mostra uma personagem bastante humana, em que a sorte acaba por lhe dar muito trabalho. Há sempre mais alguma coisa para ser feita, um equilíbrio de brancos que deve ser melhorado, um momento desfocado que teria sido perfeito se pudéssemos ver claramente a fotografia. É algo com o qual acabei por me identificar bastante, porque quando gostamos de fazer alguma coisa, queremos sempre melhorar.

Por outro lado, também ficamos a conhecer o lado sombrio da Irina, e é aqui que a crítica às normais sociais está tão bem feita. A jornada da personagem pela sua sexualidade é, no mínimo, chocante e com muitas notas de revolta. As expectativas que se tem de uma mulher – especialmente as que se podem apelidar como «bonitas» – mas também a desconsideração total quando se faz um mal impensável porque é que alguém com uma beleza tal é capaz de cometer um crime?

Se a personagem principal é a estrela do livro, todos os outros intervenientes acabam por se tornar desinteressantes e básicos, normais e comuns.

Um contraste bonito e elegante, que contrabalança muitas vezes com o exagero de Irina em muitas situações. Elas existem para nos apresentar a complexidade dos relacionamentos, sejam eles amorosos ou platónicos. As linhas do consentimento são exploradas em detalhe neste livro, e ver os papéis invertidos nestas situações também abre espaço para termos uma perspetiva diferente e igualmente pertinente sobre o assunto.



Um dos aspetos positivos do livro foi a sua entrada triunfal na narrativa, porque apresenta-nos de imediato as partes menos perfeitas da Irina. Apesar de não me identificar com o estilo de vida da personagem, e com a sua maneira de estar, foi importante ficar logo a conhecê-la daquela maneira. Por outro lado, considero que o livro mostra muito graficamente o abuso de drogas e as cenas de sexo (consentido? talvez sim, talvez não). O desenvolvimento da personagem, especialmente a espiral decrescente em que entra na última parte do livro, está tão bem construída que é difícil largarmos o livro. Aliás, toda a narrativa está construída para não conseguirmos parar de ler, daí que li as primeiras cem páginas no primeiro dia, e as últimas cinquenta de uma assentada só.

Há outro ponto bastante forte, que dá ritmo à história: o blog da Flo, a melhor amiga, que nos dá uma perspetiva totalmente diferente do relacionamento entre as duas, e também a torna numa personagem em que não dá para confiar devido à maneira como a vê. Além disso, existem bastantes mensagens de texto entre as personagens, incluindo erros ortográficos, o que considerei engraçado tendo em conta que elas enviam mensagens quase sempre bêbedas e, para falar a verdade, mesmo quando estamos sóbrios continuamos a cometer lapsos de escrita, por isso, acrescentou humanidade e empatia à história.

Em relação à tradução, achei que estava muito boa, com espaço para melhoria. Não costumo dizer «isto é uma má/boa tradução», até porque estudei a área e já fiz algumas traduções. Sei o quão difícil é traduzir um livro e que os tradutores são os maiores críticos do seu trabalho, porque nunca nada parece perfeito. Porém, colocar o artigo «a» em Tesco, que é um supermercado, mas depois dizer «o Waitrose» mostra alguma inconsistência, que também poderia ter sido facilmente tratada na revisão. Também apanhei «Tory», sem qualquer explicação ou itálico, como se se tratasse de um nome e não de um termo que dá ao partido político de direita. Um lapso que talvez até merecesse uma explicação ou uma nota de tradutor. Também há algumas expressões que foram traduzidas à letra, mais para o fim da história, mas que não interferem muito na compreensão. Dito isto, achei que a tradução estava muito polida, bem feita e cuidada, especialmente tratando-se de uma obra que é bastante complicada de transpor para outra língua, com a sua gíria e erros propositados na ortografia.


Trata-se de um livro bom, forte, e que não se ficou pelo seu potencial, muito pelo contrário: explorou em detalhe os temas que queria abordar, abrindo espaço para o leitor refletir. Deixámos a nossa personagem no meio do nada, com os seus próprios problemas, o que talvez possa ser um pouco anticlimático. Porém, nota-se que esta viagem é verdadeiramente intencional porque a «rodinha do hamster» da vida às vezes tem destas coisas.

Boy Parts é um livro difícil de ler devido aos temas que aborda, mas trata-se de uma leitura que não é enfadonha e a maneira como os capítulos estão construídos tornam a leitura bastante fluida e difícil de parar.

Tenham em atenção os trigger warnings do livro porque são bastante gráficos, mas partam para o livro com a certeza de que vão aproveitar bem esta viagem pelo mundo da Irina e de que esta personagem tem muito para vos mostrar.


 


Exemplar gentilmente cedido pela editora. Muito obrigada por esta oportunidade que deram em poder participar e apoiar o lançamento da Euforia!


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