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«A História esqueceu as mulheres» - conversa com as autoras que homenageiam as Mulheres de Almada


Recentemente lançado pela Emporium Editora, Mulheres de Almada é um livro que celebra as mulheres que mudaram o local onde viviam (e vivem). O livro segue trajetórias e causas, enaltece protagonistas que se mantêm vivas na história passada e recente, símbolos de generosidade, determinação e exemplos a seguir.


A Good Books esteve à conversa com as autoras e a ilustradora do livro, onde se falou sobre o que as motivou para escrever um livro que celebra a metade da população que ao longo dos séculos foi ignorada mas que marcou a diferença e deixou o seu legado.






Good Books (LGB): Qual foi a ideia que iniciou a criação do livro Mulheres de Almada? O que vos motivou?


M. Margarida Pereira Müller (MPM): Aprendemos na escola os grandes – e os pequenos - feitos da História. Falam-nos dos reis, falam-nos dos imperadores, falam-nos dos grandes senhores feudais e mais tarde industriais. Praticamente só se fala de homens.

Durante milénios, as mulheres foram pura e simplesmente ignoradas pela História – e quando a História fala delas é normalmente pela sua beleza.

Alguém se sabe o que fez Cleópatra além de ter tomado banho em leite de burra para se tornar mais bela?

A História esqueceu as mulheres e, no entanto, tal como os homens, contribuíram decisivamente para o Progresso da Humanidade com o seu talento, o seu trabalho, a sua competência, a sua coragem.

Com este nosso trabalho queremos não só homenagear as mulheres que, com o seu trabalho e ação cívica, formaram o município de Almada, como também trazê-las para a luz da ribalta para que as novas gerações se consciencializem de que as mulheres são parte integrante da sociedade e que não podem ser esquecidas nem caladas.

Florbela Barão da Silva (FBS): A M. Margarida desafiou-me para este projeto que tem sido para mim um processo transformador. A ideia que me fez aceitar foi poder deixar um legado à nova geração, avivar memórias e contribuir para resgatar o papel determinante das mulheres para o surgimento da cidade e para o crescimento do concelho de Almada.

É um livro sobre mulheres feito por mulheres.

Algumas das mulheres sentiram-se homenageadas e isso tem sido muito gratificante.


LGB: Ao longo do livro, temos uma lista de várias mulheres que mudaram positivamente a comunidade de Almada. Consideram que hoje em dia o papel da mulher na sociedade ainda é subestimado?


MPM: A História continua a esquecer as mulheres que contribuem, tal como os homens, para o desenvolvimento do mundo. Felizmente há atualmente um grande movimento que tenta inverter esta situação – e esperamos que o nosso livro seja mais um contributo para colocar as mulheres no lugar que lhes é devido.



LGB: Qual foi a biografia mais difícil de encontrar?


MPM: Houve algumas que “nos deram luta”, sobre quem nada encontrávamos. Como por exemplo, Maria Soares da Rocha Gomes, tripeira de nascimento, mas almadense por casamento. Ficou sempre à sombra do marido, o industrial moageiro António José Gomes, dono da maior fábrica de moagem de Portugal apesar de ter sido ela a grande impulsionadora de muitas obras de beneficência na região de Almada, como a construção da Escola Primária António José Gomes, vários chafarizes, um coletor de esgotos na Rua das Salgadeiras, a iluminação elétrica do Jardim Público da Piedade com candeeiros novos. Além disso, cedeu gratuitamente à Câmara Municipal os terrenos para a construção não só de um mercado agrícola, entre muitos outros gestos de solidariedade.


FBS: Destaco ainda a biografia da Isabel Gomes da Silva pela época em que viveu* (século XV) e não existirem muitos registos documentais e não encontrámos uma única imagem, por isso, a ilustração feita pela Isa Silva foi um desafio.

*”A 12 de dezembro de 1472, Caparica foi elevada a paróquia autónoma por bula concedida pelo Papa Sisto IV a pedido de Isabel Gomes da Silva. Mas quem era esta mulher cujos pedidos eram atendidos pelo Papa?”

LGB: Têm alguma mulher que, após o processo de pesquisa, se tornou uma das vossas favoritas?


MPM: Para mim foi sem dúvida ter ficado a conhecer D. Beatriz de Portugal. Todos nós conhecemos o Tratado de Tordesilhas, que aprendemos na História ter sido assinado por D. João II de Portugal e D. Fernando II de Aragão. Ao investigar sobre mulheres do concelho de Almada, deparo-me com esta nobre, donatária da vila de Almada e proprietária de bens do almoxarifado. Não só foi a mãe de D. Manuel I, como foi a nora de D. João I, sogra de D. João II, tia da rainha de Castela e Aragão, Isabel, a Católica. Como vemos, as suas ligações às casas reais e à nobreza, tanto de Portugal como de Castela, eram muitas. Era uma mulher com uma personalidade bem marcada. Depois de enviuvar, assumiu a chefia da Casa de Beja e Viseu, maior casa senhorial do Portugal quatrocentista.

Mais: tendo tido um papel importante na gestão da Ordem de Santiago atuando como tutora do seu filho Diogo, foi nomeada pelo Papa como governadora da Ordem de Cristo, tendo sido a única mulher a desempenhar este cargo.

No entanto, a sua atividade política não se ficou por aqui. Como Infanta de Portugal e Duquesa de Beja, ajudou a concretizar as pazes com Castela, encontrando-se pessoalmente com a sobrinha, a rainha Isabel de Castela na vila de Alcântara em 1479 para discutir o que veio a ser o Tratado das Alcáçovas ao abrigo do qual as Canárias passavam para o domínio castelhano, mas em contrapartida do que daí para Sul tudo era português. Este tratado foi a base do futuro Tratado de Tordesilhas.

Também deixou marca nos Descobrimentos. Por iniciativa própria, enviou caravelas em direção a Ocidente, contrariando a política expansionista de Afonso V, que só estava interessado em conquistar o reino de Fez, no norte de África. Foram as expedições que incentivou que descobriram as Antilhas e parte do continente americano, nomeadamente a Terra Nova, duas décadas antes de Cristóvão Colombo.


LGB: Como foi o processo de pesquisa? Tiveram que deixar alguma pessoa de fora por falta de informação, por exemplo?


MPM: Escrever um livro que exige investigação e contactos pessoais em plena pandemia com recolher obrigatório foi sem dúvida desafiante. Felizmente, estamos em pleno século XXI e a Internet possibilitou imenso o nosso trabalho, que não só nos permitiu o acesso aos arquivos digitais, como conseguimos falar com as pessoas face a face, se bem que por virtualmente.

Sim, houve algumas mulheres de que não conseguimos informação suficiente. Talvez fiquem para uma nova edição atualizada.


FBS: A seleção teve por base nomes de mulheres de várias áreas de atividade e compreende sete séculos da era cristã e dos dados existentes aos nossos dias.

Destacámos profissões, das lavadeiras às mulheres cientistas, mulheres que prestaram um serviço público à comunidade, beneméritas, nas artes, nas letras, na educação, no desporto contamos a história do concelho no feminino.

Foi engraçado na requisição de livros à biblioteca de Sintra os livros ficarem em quarentena antes de serem enviados e na consulta no Arquivo Histórico Municipal usar luvas para manuseamento dos livros.


LGB: A capa deste livro tem uma mensagem poderosa! Poderiam explicar um pouco como surgiu a ideia para capa?


Gonçalo Cardal Pais (Designer da capa): Todas as capas criadas na Emporium, surgem de uma fusão entre os materiais em bruto, seja uma ideia, imagem ou elemento que o autor providencia, e a ideia do designer, de modo a que esses materiais sejam transformados e se enquadrem na linha visual da editora.

Um dos melhores exemplos deste método de trabalho é a capa do livro Mulheres de Almada, em que me surgiu a ideia de utilizar algumas das ilustrações concebidas pela Isa Silva e transformá-las em silhuetas. Deste modo, apenas os contornos se encontram visíveis, sendo que o interior das imagens foi preenchido com uma cor sólida.

O objetivo é despertar a curiosidade no leitor, sobre a identidade das mulheres mistério que se encontram representadas na capa.

Por sua vez, as silhuetas estão envoltas por uma moldura de cores que criam contraste, inspiradas um pouco por Andy Warhol, de modo a glorificar as imagens e a conferir-lhes uma estrutura visual mais rica. A paleta utilizada são cores complementares dispostas num fundo branco, para aumentar o contraste entre os elementos da capa e captar a atenção de uma forma mais eficaz. A fonte de lettering foi selecionada para se enquadrar com o tema do livro e imagem de capa.


Isa Silva (Ilustradora): O cuidado na criação das ilustrações passou tanto pelo realismo do traço do rosto como pelos pormenores e padrões da vestimenta. Foi uma viagem desde o século XV até aos dias de hoje. São mulheres de todas as classes sociais, de várias profissões e impacto a nível de sociedade.

Aprendo sempre algo quando faço este tipo de trabalho histórico. Fico a conhecer mais pessoas e todas as suas histórias de vida. Foram criados, no total, 50 retratos de Mulheres de Almada e os 3 retratos das autoras.

LGB: A pergunta que deve ser feita: podemos contar com mais livros sobre mulheres inspiradoras?


MPM: Claro! Há milhares de mulheres inspiradoras, mulheres que, contra tudo e contra todos - e outras também com a vida facilitada – lutaram pelos seus sonhos e projetos e os levaram a bom porto. Ficaram na sombra e os nossos livros querem pô-las à luz do sol. E para além do livro gostaríamos de levar as biografias de algumas mulheres às escolas e eventualmente numa exposição.


FBS: Sentimos estar a fazer parte de uma onda de consciencialização da juventude pelos Direitos Humanos.

Há uma sub-representação das mulheres ainda em muitas áreas, mas vai-se registando um progresso lento das mulheres na política, na investigação chegam perto dos 50%, por exemplo.

Existem cada vez mais estudos de Género sobre Mulheres no Parlamento, nos Media, na Ciência, nos Centros de Decisão, e as exposições de arte e livros sobre as mulheres na literatura e como este nosso fazem justiça ao processo de apagamento a que foram sendo sujeitas durante séculos.

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